E aconteceu no
trigésimo ano, no quarto mês, no quinto dia do mês, que estando eu no meio dos
cativos, junto ao rio Quebar, se abriram os céus, e eu tive visões de Deus.
(Ezequiel 1:1)
Duas das asas flamejantes de cada uma das quatro
criaturas não paravam de bater, majestosamente, por um instante sequer, sustentando-as
flutuando no topo daquela estrutura branca e dourada que sobrenadava as nuvens.
Suas outras quatro asas executavam tarefas diferentes: um par pudicamente cobria-lhes
os corpos nus, outro par, seus próprios olhos, protegendo-as assim de serem
fulminadas pelo fulgor da Presença.
— Santo, Santo, Santo – entoaram em conjunto.
Aquele dos quatro que tinha a cabeça semelhante a de um
bovino - o aspecto mais pacífico, todo compreensão e doçura - indagou
respeitosamente:
— Por que nos convocou, Senhor?
Os outros três, com crânios que remetiam a um leão, a
uma águia e a um humano, tentaram não aparentar seu nervosismo.
— É chegado o momento dos momentos. Preparai o necessário.
Retornaremos em sete dias às terras que foram de Esaú e perdidas para Jacó por
pão e lentilhas – disse a Presença.
A voz, tão poderosa que explodiria cérebros humanos e
causaria loucura mesmo a outros seres superiores a estes últimos, fez os quatro
que eram um só, tremerem de regozijo e exclamarem num idioma quase esquecido:
— HaleluYah!
***
São Paulo, Capital.
Culpa. Desde que Carlos Ezequiel Goldstein teve
consciência de sua inominável deformação moral, ainda em sua adolescência; foi
só da vida o que ele conheceu. Monstro, pervertido até o tutano, abominável,
eram estes os adjetivos que usualmente ele utilizava para se fustigar, em
especial depois daqueles sonhos. Os
sonhos recorrentes que o faziam acordar suado, num misto confuso de excitação,
repulsa abjeta e mais, muito mais culpa.
Quase sempre o mesmo padrão onírico. Crianças; lindas,
perfeitas, iluminadas por algum sol invisível, nadavam nuas, douradas, num mar,
num lago com peixinhos coloridos, numa piscina de águas cristalinas. Elas o
convidavam, chapinhando na água alegremente, dentre gritinhos. “Vem moço, vem
brincar com a gente, vai ser legal”. Algo lhe implorava para não fazê-lo, para
fugir dali, mas ele sempre cedia ao convite tão inocente e encantador. Despia-se,
candidamente, e se juntava aos pequenos, dava mergulhos, espirrava água com a
boca. O sonho então logo caminharia para aquele final escuro que ele já
conhecia de antemão: com olhinhos assustados, cheios de incompreensão, com inocência
violada, com lágrimas das vítimas e, incrivelmente, de seu algoz também.
Sua criação, dentro de uma família de fervorosos católicos
convertidos há somente uma geração, não ajudava nem um pouco. De fato, apenas
lhe dera uma certeza: no fim ele arderia eternamente, para expiar o que não era,
afinal, sequer remotamente expiável. Fosse pela dura lei do Moisés de seus
antepassados por parte de pai, fosse pela do todo-piedoso Cristo, mesmo este
último não teria lugar para ele em seu coração pleno de amor infinito.
Pior foi nunca ousar
compartilhar sua dor antes, ter vivido até os vinte e nove em completa solidão
com seu problema. Sem ter segredado a um amigo ou parente ou terapeuta. Sequer alguma
vez confessou tais pensamentos ao padre, antes de comungar (tendo sempre a
impressão de que então recepcionava o corpo do Cristo num templo de imundice).
Por tudo isso, Carlos Ezequiel ainda era virgem. Afinal,
não se sentia atraído por mulheres e muito menos por homens. Era visto por seus
irmãos e irmãs mais velhos como um magrelo cabeludo e estranho, “o esquisito”.
Sempre cabisbaixo, nervoso, antissocial. Não ia aos aniversários dos sobrinhos
ou sobrinhas, recusava veementemente qualquer favor típico de tio: de tomar
conta das crianças para uma ida dos pais a um cinema ou restaurante, levá-las
ou buscá-las na escola. Não as pegava no colo, não lhes dava qualquer carinho.
Era o preço a pagar para manter a criatura
dormindo.
Recusava-se a ter computador em casa e devolveu um
smartphone que ganhara certa vez de presente. Evitava dirigir perto de praças,
escolas, parques de diversão. Tudo esforço para evitar a primeira vez. Sabia
que se cedesse uma única vez não teria forças para parar, jamais. Não
suportaria então a vergonha ou a decepção.
Talvez acabasse
um dia por se matar ou tivesse vivido o resto de sua vida como um recluso excêntrico,
antipático e tecnofóbico, não fosse a sorte de certa vez ter lido num jornal
sobre um grupo de apoio especial, quase secreto, visto o quanto os membros eram
odiados e desprezados por pessoas de bem.
“L’Ange Bleu”,
o anjo azul, a filial de um grupo de suporte criado na França, formado por e
para pedófilos conscientes. Uma reunião aconteceria em São Paulo, dentro de
alguns dias, justo em seu trigésimo aniversário.
***
Flórida, EUA.
— Observe este ponto azul que se eleva do centro da Via
Láctea, Dr. Monroe – apontou com a caneta na imensa tela de LCD. — O telescópio
Terrestrial Planet Finder-C registrou a atividade deste objeto não identificado
anteontem e desde então a I.A. do aparelho o selecionou para monitoração. De inicio arriscamos algumas explicações plausíveis:
protoplaneta desgarrado de seu sol, um cometa excepcionalmente brilhante, uma
exótica estrela de quarks. Medições posteriores, entretanto, colocaram nossas
especulações no lixo.
— Por quê? O que há de tão especial com o objeto?
— É supercompacto, perfeitamente esférico. Tem cerca
de 45 quilômetros de diâmetro, mas a massa não “bate” com algo deste porte. É
leve demais, brilha demais, gira rápido demais.
— Interessante... Mas ainda não entendi bem o porquê
de gerarmos então um alerta e comunicarmos com urgência ao Presidente, Jones.
Não seria mais razoável simplesmente estender a observação? Quase todo ano
esbarramos em alguma novidade; o universo é pródigo em...
— Não, não, não. Desculpa interromper... Hoje de manhã,
com o auxílio de uma lente gravitacional gerada por uma estrela massiva que ficou
perfeitamente alinhada, uma coincidência tão provável, sei lá, quanto acertar
na loteria cem vezes em sequência jogando sempre os mesmos números. Enfim, o TPF-C
conseguiu ótimos closes. Veja!
As novas fotos exibiam algo que se assemelhava a uma
roda raiada, feito a de carroças ou bigas, fundida a outra roda idêntica encaixada
internamente, num ângulo de exatos noventa graus. O objeto era dourado, mas
parecia estar envolto em chamas azuis. Quatro esferas luminosas flanqueavam a
roda dupla, feito batedores.
— Meu Deus! É, hã, é seguramente artificial... Uma
nave extraterrena, um maldito UFO!
— Sim, sim. Finalmente o primeiro contato! No entanto,
imediatamente depois das fotos, como se tivesse conhecimento de nossa
monitoração... Não me olhe assim, droga, eu sei muito bem que não é possível,
que observávamos algo que aconteceu há dezenas de milhares de anos, que poderia
muito bem nem existir mais. Bem, o fato é que a coisa disparou do centro galáctico em direção ao Braço de Órion. Desde
então estamos com dificuldades de rastrear o objeto outra vez, pois seguramente
passou a se mover a vários c.
— Acima da velocidade da luz?! Impossível!
— Muito, mas muitíssimo
acima da velocidade da luz, julgando pelo monstruoso rastro de distorção gravitacional
deixado. Com certeza há enormes discrepâncias em nossas estimativas sobre sua velocidade;
não ouso sequer comentar sobre isso oficialmente...
— Mas, mas não me faça esta cara de apavorado, Jones! –
Gesticulou, impaciente. — De quanto foi a droga da estimativa, pelo amor...?
— 1,355 x 106 c. Poderia percorrer 26.000 anos-luz em meros sete dias.
— Ora, isso é a distância aproximada do centro
galáctico até nosso Sistema Solar...
— Bingo! – Disse Jones, erguendo o dedo indicador.
***
Queimados, Rio de Janeiro.
Era noitinha e o jovem pastor José Hernandez
contemplou satisfeito o templo abarrotado de fieis, que já transbordava pessoas
às calçadas do entorno. Fazia menos de um ano que sua modesta Igreja da
Renovação do Sagrado Ministério havia sido criada ali, num antigo cinema de rua
falido.
Normalmente seus cultos conseguiam atrair pouca gente,
apesar de seu dom de falar tão eloquentemente. Mesmo com o atrativo das recém-introduzidas simpatias, dos tijolinhos de plástico,
fitinhas e dos vidrinhos de azeite consagrado... Contudo, depois do que
acontecera no culto daquela manhã, de boca em boca uma mensagem fora passada - milagre -, e o resultado destacava-se
diante de seus olhos: casa cheia, como ele nunca sequer ousara sonhar.
Sonhar... Ora, fora realmente sonho ou revelação?... Aquele
círculo de fogo, as vozes tonitruantes, o acordo e o poder! O poder de realizar
maravilhas além da compreensão. Não entendia o porquê de ter sido o eleito, mas
não havia tido tempo para pensar melhor no assunto.
Fez um gesto para que se aproximassem e todos os enfermos
e deficientes se organizaram em fila, no corredor central, com o auxílio dos
obreiros e novos voluntários. Fazia um calor senegalesco e os ruidosos ventiladores
não davam conta de refrescar tanta gente, mas José não suava. Seus doentes já não
eram aqueles de todas as semanas; mal pagos para fingir, para largar suas
muletas teatralmente – que eles jamais usaram – e encenar milagres para
convencer os simplórios dizimistas. Eram
reais! Cacete, desta vez eram pra valer!
Fechou os olhos, ergueu os braços e estendeu seu toque
de trilhões de nano robôs invisíveis, para todos os que imploravam. Sentia em
sua mente, percebia facilmente o mal que lhes acometia, como se fosse capaz de milhares
de escaneamentos em 3D simultâneos. Destruía um tumor inoperável aqui, reparava
nervos seccionados acolá, reconstruía ossos, medulas, íris, rearranjava conexões
neurais. Cegos agora poderiam ver, paraplégicos caminhariam sem esforço, alcoólicos
não desejariam mais voltar a beber... Era tão simples, tão maravilhoso! Os
pobrezinhos eram, no fim das contas, apenas brinquedos quebrados, e ele aprendera
como os consertar!
Enquanto mantivesse a palavra dada, o poder seria seu.
Enquanto conduzisse o gado na direção certa e o marcasse, conforme instruções,
tudo seguiria aquele curso; “prodígios e sinais espantosos”.
— Desejo que passai a me chamar de Profeta José. É só
o que vos peço em troca – disse ele à massa que começara a cair de joelhos.
***
São Paulo, Capital.
— Graças ao Senhor Jesus Cristo não cometo nenhum mínimo
delito há onze anos, seis meses e dez dias – começou a falar um homem muito
gordo e de aparência bonachona, com cabelos grisalhos e ralos fixados com gel e
doces olhos de sabujo. — Sim, mesmo quando me encheram de Depo-Provera, em
doses cavalares, eu ainda pecava, ainda sonhava, fantasiava acordado, feito um
viciado irrecuperável, como um... Recém-mutilado, ainda capaz de perceber o
membro perdido. A droga me tornava impotente, esfriava minha libido, mas ela não
tocava minha alma, não vertia luz no lodo, na escuridão que eu vergonhosamente escondia,
não me redimia, não me tornava uma pessoa boa. Eu, eu confesso a todos
os novos colegas aqui, que anos antes, quando eu ainda era uma marionete de
minha doença, eu molestei minha sobrinha por mais de três anos e comprei seu
silêncio com presentes e chantagens. O trauma que causei, o mal, foi tão
grande, que a pobre menina tentou suicídio com somente quinze anos.
A voz do obeso senhor embargou, ele levou as mãos ao
rosto e chorou ruidosamente por alguns instantes. O grupo presente, de umas quinze
pessoas, fez um silêncio respeitoso.
— Por vontade própria decidi então revelar meu crime. Fui preso, perdi tudo: emprego, o respeito dos
meus filhos e de minha esposa, todos meus amigos. Só conheci ódio selvagem e
incompreensão. Hoje eu já paguei minha pena junto à sociedade, mas somente isso
não fora suficiente para mim, vocês entendem? Se não fosse o trabalho junto do grupo
de apoio, os psicólogos voluntários, os novos amigos, eu não teria superado,
digo, teríamos, pois minha ex-esposa recentemente
voltou a conversar comigo amigavelmente, e até minha sobrinha falou-me ao telefone
que conseguiu me perdoar – o rosto do homem pareceu iluminar-se. — E eu, eu
também, eu acho que o meu trabalho aqui, junto de vocês, ele me ajuda a me perdoar, todos os dias. Nós somos doentes, eu sei, mas o problema inerente
do nosso mal é que ele machuca, traumatiza, sexualiza precocemente, gente
inocente. Meu nome é Manoel dos Santos Araújo e eu fui um pedófilo. E aqui, com
a ajuda de todos vocês e das autoridades que nos apoiam, vamos trabalhar para evitar
que aconteçam histórias semelhantes à minha.
De inicio, Carlos Ezequiel não conseguiu partilhar com
o grupo; havia criado barreiras tão espessas, tinha tanta vergonha do que
sentia, que o pavor lhe paralisava. No entanto, como já estavam acostumados a
casos como o seu, não fizeram pressão para que ele falasse, embora secretamente
já o registrassem para alguma investigação posterior.
Já quase no fim da reunião, ele atreveu-se;
gesticulou, e disse rapidamente ao microfone que foi trazido junto à sua boca
por um voluntário:
— Eu... – engasgou. — Eu nunca fiz nada de verdade, mas sem ajuda eu vou fazer, eu sei que vou! Me ajudem,
por favor!
Aquela confissão resultou num alívio tão grande! Ele
se surpreendeu ao notar seu próprio pranto, que veio abundante, como uma
represa há muito contida. E o que fora aquele abraço coletivo que se seguiu? Tão
espontâneo, tão confortador...
Decidira então consultar um dos psicoterapeutas do
grupo no dia seguinte. Submeter-se-ia, voluntariamente, à castração química, ao
menos enquanto representasse algum risco.
Já era noite e chovia forte enquanto Carlos dirigia de
volta à casa, seguindo a Marginal Tietê, quando um pneu furou e ele teve que
parar para trocá-lo. Seu coração estava tão pleno de felicidade que ele até se pegou
assoviando alegre, mesmo encharcado pela chuva que não dava trégua e enlameado
pelos respingos dos carros que singravam cegamente pela via.
Nem notou, junto às suas costas, o círculo de fogo se
abrindo no ar, defronte a fachada duma loja falida e pichada, coberta de
cartazes que se descolavam com a água que descia sem parar do céu lodoso.
— Trinta anos, num cinco de Abril, mais uma vez. Não
junto do rio Quebar, muito embora todos os rios deste mundo sejam seus
afluentes. Não junto dos cativos, embora os que por aqui apressadamente passem em
suas carruagens primitivas, sejam escravos também. Ezequiel, escuta-nos com
atenção! Pois nós somos Metatron!
***
Flórida, EUA.
— Sim, senhor Presidente. É realmente uma teoria
interessante a que meu pessoal levantou. Não há como negar; o objeto se
assemelha muito às descrições da tal Roda de Ezequiel relatada nas escrituras.
Até o tamanho, 45 quilômetros, não deve ser coincidência. É certamente um
múltiplo da unidade de medida da época, o côvado, que tinha 45 centímetros. Provavelmente
já visitaram à Terra no passado. Se o tal profeta simploriamente confundiu um UFO
com um emissário de Deus? Exato! Claro! Continuaremos com nosso plantão 24/7!
Obrigado pela confiança. Até logo, senhor!
O velho Dr. Monroe colocou o fone do gancho e passou a
mão pelos cabelos grisalhos e revoltos. O corpo doía e implorava por um banho
morno e algumas horas de sono, mas, ao invés, ele encheu uma caneca com o
emblema da NASA com mais cinco ristretti.
Ficou por algumas horas analisando os arquivos recentes do TPF-C e quase
cochilava quando o jovem e excitável Dr. Jones intempestivamente entrou na
sala.
— Dr. Monroe, finalmente localizamos a nave! Num lance
de pura sorte, a sonda Messenger detectou-a; sua sombra enorme até eclipsou todo
o lado iluminado de Mercúrio por alguns segundos! Está agora em órbita síncrona
com a rotação do Sol. Escondida do lado oposto da estrela.
— Hã? Escondida!? Viajam 26.000 anos-luz e timidamente
não querem aparecer? – Comentou chocado. — Houve alguma tentativa de
comunicação? Números primos, na frequência da água e aquilo tudo mais?
Ignorado, um botão piscava loucamente num dos painéis
de controle do telescópio espacial. Por longos sessenta segundos a I.A. do
Terrestrial Planet Finder-C esperou pacientemente, e-mails foram replicados e
mensagens SMS também. No entanto, seu protocolo de emergência então passou a
não exigir mais tamanha educação.
Alarmados pelo bipe estridente, os dois observaram,
incrédulos, uma nuvem de milhares de naves negras como piche emergir do buraco
negro central da Via Láctea. Por alguns minutos elas fizeram uma coreografia
desconcertante, formando estruturas como dois cornos encurvados e desapareceram,
desprezando as leis físicas sobre espaço e tempo.
***
São Paulo,
Capital.
Carlos gritou e caiu de joelhos. De inicio pensou que
enlouquecera, mas rapidamente recordou-se das leituras do tempo do catecismo, e
dos livros judaicos que leu por curiosidade também. Reuniu toda a sua coragem e
percebeu, com vergonha, a voz escapar muito fraca de sua boca.
— Metatron? Um, um anjo? O serafim? Ah, Senhor, eu não sou digno! – Gaguejou uma frase bíblica
que lhe pareceu adequada. “Como, afinal, se deve falar com um anjo?”
Os quatro empunhavam bastões e suas vinte e quatro
asas estavam abertas, esplêndidas. Lado a lado, falaram ao mesmo tempo, em
sincronia perfeita. Vozes de bovino, de humano, de águia, de leão.
— Os 144.000 líderes de tribos já foram avisados em
sonho. O Profeta também já foi eleito. A Roda entrará em órbita e buscará os
justos, todos eles. Subirão em corpo e alma, com destino ao planeta Nova
Jerusalém, recompensa suprema por suas vidas justas, como foi prometido e
profetizado. Pois é chegado o momento dos momentos! O Arrebatamento! Há pouco
tempo, no entanto; o exército de ash-Shayṭān já se encaminha para apoiar o futuro
Governo de Escuridão.
“O Arrebatamento? A escolha dos justos?”, por que os
anjos vieram procurá-lo? Será que finalmente suas preces por perdão teriam sido
atendidas?
Uma compreensão súbita queimou a mente de Carlos
Ezequiel como um raio. “Mas era esta então a razão!” Ele não era um maldito
pervertido, não era! Era, em verdade, um tipo torto de mártir, que sofrera a
pior das dores; a prisão da própria mente! Isso, sem ceder à tentação! Fazia
parte do Grande Plano, desde o inicio! Estava, portanto, destinado a liderar o
Povo Escolhido, para uma vida numa esfera superior. Nunca na vida pensara em
algo assim, mas agora fazia tanto sentido...
— Eu não sei como vos agradecer. Deveria ter tido mais
confiança na sabedoria de Deus. Ah, eu mal posso esperar... Ascender e liderar
os Escolhidos!
A entidade com cabeça de leão, a justiça implacável,
urrou furiosamente e pareceu preparar-se para saltar e devorá-lo, sendo seguro,
no entanto, pelo serafim com cabeça de águia, o observador arguto. Lágrimas
empáticas desceram dos enormes olhos do bovino, e o anjo de cabeça humana
apenas meneou o rosto, tristemente.
— Criança tola – disse o serafim de cabeça de touro. —
Viemos conceder-te poder, poder absoluto, para que sigas com teu destino. É
óbvio que não há lugar para ti dentre os Escolhidos!
— Como assim? Fi-ficarei para trás para ajudar a
redimir os pecadores? É isso? Irei então num segundo Arrebatamento?
— Como te dissemos: o Falso Profeta já foi escolhido, os
líderes organizarão a ascensão e os ímpios ficarão para trás. Quase todas as peças
necessárias já estão dispostas no tabuleiro, conforme o Plano. Faltava-nos,
entretanto, ainda empossar o Anti-Cristo.
Sem mais dizer, ignorando os olhos céticos do homem, os
quatro que eram um dispararam raios exóticos de seus bastões, de tecnologia tão
avançada que pareceria mágica aos olhos dos ignorantes; alterando o corpo de
Carlos Ezequiel em nível molecular, e ampliando sua mente também.
Horas depois, quando Ezequiel despertou, os anjos já haviam
partido, os justos voavam por todo lado liderados pelos 144.000 e a Roda,
colossal como quatro Luas cheias, orbitava o planeta, envolta numa aura de místico
fogo azul. Frustrado, Ezequiel gritou, e um relâmpago desceu dos céus, fulminando
uma árvore próxima em resposta.
Vagarosamente colocou-se de pé, percebendo então o
peso de um mundo em suas costas. Desejou e um vulcão aflorou do solo e começou
a despejar lava sobre o curso do rio muito poluído, erguendo imensas nuvens de
vapores fétidos.
Revisou suas alternativas, havia de encontrar-se com o
Falso Profeta e organizar seu Novo Estado. Enfim, derrubando prédios com um gesto
irritado, abrindo seu caminho como uma força da natureza, redescobriu outra vez
seus apetites latentes e alegrou-se com a ideia de que seguramente algumas das
crianças não teriam sido arrebatadas.
— Pequenos ímpios, chegou o momento do arrebentamento!
– Gargalhou, ao deixar escapar a primeira das muitas heresias que ele ainda
proferiria nos mil anos de seu governo.